Femme Fatale. Uma expressão francesa que significa “mulher fatal“, referindo-se à uma figura mitológica ou da literatura e filmes: a mulher sedutora que atrai os homens com poderes aparentemente sobrenaturais. Ela é a encantadora Circe, que transformou a tripulação de Odisseu em porcos e deteve-o durante um ano apenas com seu charme. Ela é a Eva, cujo desejo pelo proibido fez com que a toda a humanidade fosse expulsa do paraíso. Ela é Edie Sedgwick, a delicada, drogada, it girl original e garota linda profissional pelo qual o Velvet Underground escreveu uma música a pedidos de Andy Warhol. Mas ela é mais famosamente associada com os filmes noir dos anos 40 e 50, e os neo-noir dos anos 80 e 90, onde atrizes como a Barbara Stanwyck, Lana Turner, Jane Greer e, mais adiante, Sharon Stone, Glenn Close e Linda Fiorentino interpretaram as personagens cinematográficas mais memoráveis da história: sexy, fortes, ambíguas e às vezes letais.
Em filmes noir – o laboratório onde a mulher fatal foi refinada – uma glamourosa e manipuladora anti-heroína seduz um protagonista masculino, que tende a ser um cara único, solitário, grato pela sua atenção. Em seguida, manipula-o para cometer algum ato inescrupuloso, como matar seu marido. No filme “Pacto de Sangue“, Barbara Stanwyck interpreta Phyllis Dietrichson, uma loira misteriosa que convence um crédulo vendedor de seguros, Walter Neff (Fred MacMurray), ajudá-la a ganhar o dinheiro da apólice de seu marido, e, eventualmente, assassiná-lo. Em “O Destino Bate à Porta“, Lana Turner, como Cora Smith, esposa de um rico proprietário de restaurante nos anos 30, comete o mesmo crime; só os homens e a trama de assassinato diferem.
É raro ver uma personagem desse estilo nos filmes atuais, talvez porque não seja mais um estilo empoderante para as mulheres contemporâneas, já que hoje a maioria possui sucesso profissional e dinheiro próprio. A ideia sugere que as mulheres só podem conseguir o que querem através de emboscadas, manipulações e sedução ao invés de qualquer tipo de realização meritocrática. Esse papel de femme fatale sugere que o sexo – a habilidade de ampliar seu significado, sugerir a possibilidade do mesmo ou de fazê-lo como uma promessa necessária para realizar tais êxitos – é uma ferramente que a mulher pode usar para perfurar e criar um túnel para conseguir um estilo de vida melhor no mundo masculino. Fico intrigada por mulheres que fazem disso um estilo de vida, pois eu nunca fui capaz de operar dessa forma. Sempre pareceu constrangedor, dramático, talvez um pouco primitivo e, certamente, antifeminista – ou assim eu pensava.
Fiz faculdade no final dos anos 90, no auge da terceira onda do feminismo, quando a noção que prevalecia – absorvida dos atos que aconteciam no campus através de osmose – era que para vencer o “patriarcado”, e para “quebrar o teto de vidro”, nós não precisávamos apenas nos equiparar aos homens em todos os empreendimentos, nós precisávamos superá-los. Nós tínhamos que ser mais inteligentes, mais resistentes, mais hábeis. Então carreguei essa ideia em minha vida romântica e profissional de adulta. Não foi uma estratégia de grande sucesso. Eu trocava insights inteligentíssimos com os homens que eu queria transar, esforçando-me para mostrar o quão formidável eu era. Com medo de ser confundida como alguém que não é séria, eu ia para entrevistas de emprego fazendo de tudo para que eu parecesse menos atraente e feminina. Usava um terno grandão preto minimalista e um óculos de armação grossa, fazia um coque bem apertado no cabelo e colocava o tipo de maquiagem neutra dos anos 90. Eu não estava totalmente errada em pensar que o mundo categorizava as mulheres em “cérebro” ou “beleza”, “substanciais” ou “bobinhas”, e que as pessoas muitas vezes não podem “ter duas idéias opostas na mente ao mesmo tempo”, parafraseando F. Scott Fitzgerald. E, no entanto, sempre houve mulheres que de alguma forma conseguiram estar à vontade em sua feminilidade e ainda serem levadas a sério.
Um tipo que domina isso muito bem – a arte de ser integral, pode-se dizer – é a femme fatale. Mesmo que ela raramente apareça nas telas de cinema hoje em dia, ela persiste na cultura popular. “Femme Fatale” é o nome do cd que a Britney Spears lançou em 2011 e também de uma linha de lingeries da Dita Von Teese. No vídeo perversamente divertido da Rihanna, “Bitch Better Have My Money“, a cantora é uma femme fatale gostosona de biquíni, maconheira e que tortura a esposa do seu contador como tentativa de recuperar o dinheiro que ele deve para ela. Na série “Orange Is The New Black“, Laura Prepon interpreta a Alex Vause, uma vigarista que seduz Piper (e não um homem desta vez, mas uma vítima no entanto), convencendo-a de transportar dinheiro do tráfico de drogas.
Estes são apenas alguns exemplos, mas me convencem de que Hollywood deveria canalizar o que está claramente flutuando no espírito da época e dar ao público uma femme fatale nouveau: uma mulher que exerce poder intelectual e sexual, que é bem sucedida e astuta em seu próprio direito, mas também é carismática e tem uma intensa sexualidade manipuladora.
Fica notável a maneira que uma femme fatale clássica de filme noir como a Barbara Stanwyck (em Pacto de Sangue) parece, ainda agora, como algo moderno. “Eu nunca te amei, Walter” diz Phyllis *SPOILER* depois que ela atira nele, usando um terninho de seda para a ocasião. “Não é você, ou qualquer outra pessoa. Sou podre até o coração.” *FIM DO SPOILER* Numa altura em que os únicos caminhos abertos para a maioria das mulheres eram o de esposa e mãe, esses personagens estraçalhavam a domesticidade tradicional – elas raramente tinham filhos – em favor da independência. “Nada no mundo é bom, a menos que você possa compartilhá-lo”, Jeff Bailey (Robert Mitchum) diz com sentimentalismo em “Fuga do Passado“, quando ele encontra Kathie Moffat (a jovem Jane Greer, que é tão linda que observá-la é como olhar para um eclipse solar) no México. “Talvez você deveria ir para casa”, ela responde para ele e dá uma tragada no cigarro.
Estudiosos notaram que o arquétipo foi a resposta da cultura popular para mudar os papéis de gênero durante e após a Segunda Guerra Mundial: Mulheres começaram a trabalhar, tinham ganhado independência, renda própria e liberdade sexual; homens estavam preocupados com a ruptura da família tradicional e se ainda teriam local para trabalharem. A femme fatale foi uma projeção dos temores masculinos e uma demonstração para as mulheres do que acontece quando pisam fora dos limites. Na mesma linha, pode-se argumentar que os filmes neo-noir dos anos 80 e anos 90 foram uma resposta a um número crescente de mulheres que entraram na força de trabalho.
Em certo sentido, a femme fatale desapareceu porque o código entre os sexos mudou. O arquétipo dependia de um cavalheirismo que não existe mais; a femme fatale foi uma metade de um duo. “O que é isso tudo para mim?”, diz James Ellroy, autor da novela 1990 neo-noir “LA Confidential“, “É o homem no fim da linha em sua vida e carreira, e nada é mais emocionante existencialmente do que encontrar uma mulher que vai mudar sua vida… então o que você está procurando fazer é render-se incondicionalmente. Ela quer que você cometa um assassinato, ela quer que você cometa atos irracionais para agradá-la e, um certo tipo de homem, vai fazê-lo”. A mulher fatal não foi apenas o pesadelo de um homem, ela também era sua fantasia: uma mulher no comando de sua própria sexualidade, que iria assumir o comando de seu bem.
Agora fica claro para mim o motivo, como uma mulher jovem descobrindo seus desejos e limites sexuais, de eu ter fixado a atenção em tais mulheres. Os suspenses neo-noir como “Instinto Selvagem” e “O Poder da Sedução” foram lançados quando eu tinha 16 e 18 anos, respectivamente, e apesar de proibido eu os assisti mesmo assim. Nunca esquecerei a emoção perversa de ver a loira platinada Sharon Stone (como a escritora Catherine Tramell) tornando uma sala cheia de detetives do sexo masculino sem palavras apenas com a sua cruzada de pernas, ou então a mistura estranha de choque e excitação quando a Linda Fiorentino (como a provocadora Bridget Gregory) desabotoa o cinto e agarra o pênis do cara (Peter Berg) que se gaba, após conhecê-la em um bar, que ele é super bem dotado.
Enquanto a violência desses filmes não é nada que eu tenha planejado imitar, no tempo em que estive na faculdade eu tinha, como a maioria das mulheres jovens, encontrado muito sexismo e idiotice masculina – como exemplos: o cara de 18 anos que disse para mim aos 14 anos que perder a virgindade era como aprender a andar de bicicleta; o professor de 40 anos que dava repetidas investidas em mim durante a escrita da minha tese – e o sadismo desse filmes continham uma resposta dura para esse tipo de comportamento. As maneiras desapegadas e cínicas que essas personagens tratavam os homens era uma revelação: Assistir elas permitia que eu canalizasse minha raiva não expressada, para experienciar uma espécie de fantasia vingativa.
Em filmes noir, como muitos críticos têm apontado, a femme fatale é quase sempre punida, mas não é a sua queda que chama a atenção. Em vez disso, lembramos de uma mulher astuta, magnética e que consegue manobrar em torno de regras e expectativas constritivas da sociedade.
Recentemente houve um filme que ofereceu uma atualização sobre a femme fatale: uma mulher que faz a punição. “Garota Exemplar” apresentou Amy Elliott Dunne, interpretada com intensidade por Rosamund Pike. Amy não manipula um homem para fazer seu trabalho sujo, ela é diabólica sozinha. Claro, seu marido, interpretado por Ben Affleck, não é flor que se cheire também e assistir ao seu casamento suicida foi muito divertido.
Hollywood adora uma fórmula comprovada, e o sucesso de “Garota Exemplar” certamente significa que, em breve, veremos alguns filmes estrelados por femme fatales alfa auto-suficientes. Mas há espaço para o gênero evoluir ainda mais. Que tal filmes que exploram a subjetividade da femme fatale, em que sua sexualidade, apesar de assegurada, não precisa ser uma performance?
Apesar de eu ter passado este texto defendendo um retorno às artimanhas femininas, há, pelo menos, uma maneira em que as mulheres poderiam ser mais como os homens. Os homens não são forçados a separar suas personalidades e nem precisam escolher um tipo de poder, abrindo mão de outro. James Bond é uma femme fatale do sexo masculino – também conhecido como um garanhão – que deixa as mulheres aos seus pés, mas nunca há qualquer dúvida de que ele consegue realizar com excelência o seu trabalho profissional. Por que não há personagens femininas como este? A noção verdadeiramente feminista, agora eu acho, é a utilização de todas as vantagens que você tem.
Texto traduzido da revista Elle americana de novembro de 2015,
originalmente escrito por Amanda Fortini.
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